Infância

... e seria uma tarde como outra qualquer se os dias não lhe fossem tão mágicos. Olhava pela janela a sutileza de Morfeu estendendo seu mando no céu, para fazê-lo da mesma maneira em seu quarto que não era um quarto do mundo senão o mundo e mais um quarto. Através do verbo Criador, tecia gravemente, como convém a um deus, ponto a ponto, linha a linha, a colcha de um planeta que não necessitava de sete dias para ser criado.

Mais generosa, ainda, povoava seu paraíso de infinitas invenções de pessoas, com direito, inclusive, ao livre-arbítrio que elas mereciam. Mais humilde, certamente, vivia no meio delas, nem melhor nem pior, nem mais densa ou menos densa. Talvez menos...

E o tempo, seu amigo violinista, se desenlaçava em diferentes sinfonias de tons coloridos, muito bem contorneadas de Sol Maior.
Nesta tarde, saindo do seu quarto, coisa que quase não fazia, na sala jazia a prima por debaixo de um menino que lhe subia a saia com a naturalidade de quem há muito o fazia; a mesma naturalidade com que ela o aceitava, como a um cachorro ao qual se acaricia.

Foi um raio de segundo que cortou o céu, iluminando-o somente para que se pudesse reconhecer a posterior escuridão amarga, escuridão esta que lhe entrava nos olhos em forma de pequenas agulhas. Voltou rapidamente, um caminho de três passos que durou só Deus sabe quanto... Não, nem Deus seria capaz de sabê-lo. Quem entende de abismos é o Diabo.

A prima, moça de vinte anos, escultura feita do mais poderoso ímã nunca jamais visto, pintada a mão no último trabalho de um bom artista…
Ela fechou a porta ao mesmo tempo em que fechava os olhos…
Mas, um maldito invejoso havia aplicado em suas veias uma quantidade desnecessária de um sangue de cor e textura singular…
Ia escorregando as costas na porta, com medo de abrir os olhos…
Ela nunca foi mais que uma boneca enfeitaçada, que nasceu fragmentada como um suspiro humano.

Abaixou a cabeça…

.

E algo explodiu em si como uma tempestade vermelha sem horizonte. Se não fosse pela cor vermelha da chuva tão repugnante, juraria que eram lágrimas de quem havia acabado de aprender a chorar somente por dentro. Essa chuva de agua de fogo, goteirando grossa, destruía efetivamente seu mundo, todas as estrelas postas tão calculadamente em seu manto… E com uma força contrariamente imensa espatifava a terra no céu, o dia na noite, até comprimir o universo, seu universo, no nada solitário e escuro, para onde ela teve a dolorida consciência de que iam todas as coisas.


Abriu o olhos…


Com uma dor surda olhou pela primeira vez como tudo sempre foi o que ela nunca havia conhecido. Em outra circunstância teria gritado… Correu para a janela donde pôde constatar com áspera resignação que a noite se via noite, as estrelas se viam estrelas e o mundo um sem fim de coisas como as que havia acabado de ver, povoado de humanos maciços de carne e osso e deus e tudo…

Então…

Lentamente…

Caminhou para o armário, colocando em cada passo uma esperança que se via débil como um pequeno inseto. Abriu-o com uma sobriedade que lhe era desconfortável e colocou aí todos seus livros espalhados, a matéria-prima de suas criações… Um ritual de encontro de si consigo, seu golpe de misericórdia, seu último presente de si-havia-sido para a possibilidade do que poderia ser. E, assim, inspirando uma coragem necessária, abriu a porta do quarto para tomar café e não a fechou mais.

Comentários

Um texto e tanto. Desses que procura-se e não se encontra, a não ser quando nos deparamos, sem perceber ao certo como, com ele em algum canto que nunca suspeitaríamos encontrá-lo. É surreal.
Já viu a promoção que ta rolando solta no blog O Leitor?
Ainda não?
Então corre, que até o dia 05 de Fevereiro você ainda pode concorrer a um dos 6 livros que estão sendo sorteados.
Beijos e espero você lá,

Pamela.

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